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Com os Pés em Maués – final

09/12/2010

Enquanto as últimas gotas caiam, chegou o almoço que o Yves havia pedido. Ele estava faminto, já passava das quatro horas. Eu havia almoçado em Manaus. Encontrei um bom restaurante no terraço do aeroporto, comi paçoca e feijão tropeiro. Lanche pra mim só quando não tem opção. Ele optou por ir ao Bob’s, que só é opção para milkshake de Ovomaltine. Pediu um cheeseburger, veio sem o burguer. Cheese alface. Pobre Yves.

Tele-entrega de peixe. Ele abria as quentinhas e exultava, experimentou e disse que estava muito bom. Sentou ao meu lado e atacou o prato. Poucas garfadas depois ele me olhou e disse:
– “Olha essa pimenta!”, e me mostrou uma pequena pimenta amarela claro. Concordei, mas logo voltei os olhos para a rua, estava entretido com o vai-e-vem de motos que estava começando, após a chuva. Então ouvi o barulho. O barulho de quando mordemos um vegetal fresco, tipo pimentão, pepino, cebola e assemelhados, enfim, um ‘crunch’ característico. Logo depois ouvi uma voz de boca cheia, meio abafada:
– “Hum, é forte!” Em seguida meu amigo deixa o prato em cima da cadeira que estava sentado, e desaparece. Nos próximos minutos escuto barulhos de abre-e-fecha portas, uma movimentação às minhas costas.
Engraçado, eu pensei, O Yves estava com tanta fome, porque será que largou o prato? Será que foi telefonar, ou deu vontade de ir ao banheiro? Mais alguns minutos, então ouço, bem baixinho, uma voz torturada, vindo da direção dos quartos:
– “Cara, tá foda…”. Ah, entendi.
– “Meu, come farinha, arroz! Não bebe água não!”, eu gritei. Escuto o barulho de pratos e talheres sendo manipulados bruscamente, mais uma vez meu amigo desaparece. Bem, não há nada que eu possa fazer, pensei. Essa é só com ele. Dez minutos depois meu amigo reaparece, de óculos escuros. O rosto vermelho.
– “Cara, chorei.”, ele confessou. Contou que achou que ela seria só um pouco ardida, e mordeu a pimenta inteira, junto com um pedaço de peixe. O negócio explodiu na boca dele. Mais forte do que tudo que havia sentido em matéria de pimenta. Entrou em pânico, bebeu água, e pronto, estava com escorpiões na boca. Desesperado foi para a frente do ar-condicionado, tentando qualquer solução. Nada adiantava, o fogo agora queimava a alma. Foi quando falou comigo, e eu sugeri a farinha. Ele rasgou o saco em que ela veio de qualquer jeito, jogou tudo em cima da mesa e comeu do jeito que podia. Lentamente foi se recuperando. Mas o almoço estava perdido, de novo. Pobre Yves.

Pedi duas cervejas, e após meu amigo recuperar a fé na vida, resolvemos dar um pulo no local do show. O palco estava montado numa praia à beira do Rio Maués-Açu, que dá nome à nossa simpática cidade. Estamos na época da baixa das águas. Milhares de praias brotam às margens dos rios amazônicos. À frente do palco, em uma grande área de areia, cercada de barraquinhas de comidas e bebidas, foi motada uma quadra de futevolei. Está acontecendo um torneio dentro das comemorações da XXXI Festa do Guaraná. Duas duplas se esfalfam sob os olhares de alguns curiosos e da nossa equipe, que neste momento está montando o palco. Acompanho com algum interesse. Nunca aprendi a jogar volei, e sou um pereba no futebol. Este esporte representa tudo que eu nunca consegui no mundo da bola. Meu buraco negro esportivo.

Balões com a marca do guaraná Antarctica enfeitam o local. A AmBev, fabricante do dito cujo, tem aqui suas plantações do místico fruto. Sou informado que Coca Cola, aqui, é palavrão. Muito bem. Fiquei imaginando se a organização da festa havia nos pedido pra não tocar Geração Coca Cola. A gente poderia ter feito uma nova versão, Geração Guaraná: Somos os filhos da amazonia/Somos os índios chapa-branca/Nós somos o fruto dessa zona/Geração Guaraná-á! Acho que ia bombar.

Nos prometeram um kit-guaraná, com pó, sementes e guia do usuário, mas ficou na intenção. Acabei não tomando ou provando do verdadeiro guaraná, mas ouvi dizer que levanta até defunto. No camarim, Red Bull. Porque não temos um energético à base de guaraná? Temos que tomar estes xaropes feitos de mijo de touro (é daí que vem a taurina), enquanto a fruta milagrosa dos nossos índios vira um refrigerante. Bye bye Brasil…

Dali à pouco escureceria. Fui dar um passeio pela praia, caminhei por um longo trecho de areias brancas. Infelizmente não estava com minha bermuda de banho, que droga. Molhei meus pés, e surpresa, a água é muito quente. Perfeito para banhos noturnos, romance e aquele peixinho que entra no fiofó dos desavisados. A Amazônia não é para principiantes. Ao longe, na continuação da margem, um estacionamento de barcos, dezenas, talvez mais de uma centena, um ao lado do outro. Um verdadeiro bairro de barcos, de todos os tipos e tamanhos. O bairro dos encalhados. O Flávio comentou depois, que todo o cocô produzido pelas pessoas que moram nestes barcos vai para o rio. Ou seja, onde há barcos encalhados, há bosta flutuante. Você encalha o barco para passar a noite, dorme na rede e acorda na merda. Poesia pura. Resumindo: Onde houver barcos, nadar, só rio acima. Deixem os cagalhões rumarem aos vagalhões, e…, pronto, taí um bom nome para um boteco beira-rio copo-sujo: O Cagalhão Encalhado.

Enquanto tirava fotos e pensava em baleias encalhadas, apareceram dois malucos, que me reconheceram. Contaram então sua história, tinham vindo de Manaus só para ver o show, doze horas de barco, um deles morria de medo de viagens náuticas. Um deles havia pego a camisa que o Dinho jogou para a galera num show em Manaus, o outro acho que tinha conseguido uma palheta. Fãs amazônicos, que surpresa bacana. Doze horas num barco para ver o Capital Inicial. Já que o artista tem que ir onde o povo está, bem que a gente podia fazer uma turnê pela Amazônia, de barco. Seria o Capital Fluvial. E o Dinho gritaria:
– “No baixo, Flúvio Lemos!”

À noite a sorte sorriu para o nesta altura desnutrido Yves. Não havia restaurante aberto, mas perguntando ao pessoal do hotel soubemos que um restaurante nos limtes da cidade, o Sabor do Campo, estava servindo comida para uma equipe da TV Bandeirantes, na cidade registrando o Festival. Conseguimos uma carona na caçamba de uma pick-up, eu, meu amigo com deficit alimentar e o Robledo. Chegamos na hora em que os atenciosos proprietários colocaram à mesa duas travessas imensas de peixe, uma de tucunaré grelhado, outra de cuí-cuí à escabeche. Arroz, farinha amarela que deve ter um nome que eu não sei, um saladão. Que comida maravilhosa. Com certeza o melhor peixe que comi este ano. Nós três nos olhávamos calados e comíamos uma comida divina, única, inesquecível. A pimenta assassina estava lá, desta vez foi picada em pedacinhos e espalhada pela comida. Mesmo assim suei no cocoruto. Quando fomos pagar, que nada, cortesia. Completamente subjugados pela gentileza e pela gastronomia amazônica, demos o que tínhamos à mão, no caso munhequeiras do Capital Inicial. Pouco pano para tanta manga…

À noite, depois de um show maravilhoso, de um entusiasmo popular sem igual, quis agradecer àquele povo, àquelas águas e florestas, lembrei do restaurante e gritei no microfone;
– “Galera do Canto do Sabor, valeu!”, e saí do palco feliz da vida. Contudo, algo soava estranho, hum… parei pra pensar… hum… Canto do Sabor… hum… será… Não! Que mancada…
Gafes (contém meu nome…) à parte, a admiração e o respeito são verdadeiros. Para deixar bem claro:
– “Galera do Sabor do Campo, VALEU!!”

E tome guaraná!

PS: Confiram este blog:
http://blogdoaldemirdemaus.blogspot.com/p/maues-onde-fica-como-chegar-e-o-que-vai.html

Com os Pés em Maués – parte 1

29/11/2010

Espaço Aéreo Brasileiro, 28/11/2010

17:59

Estamos voltando de uma das viagens mais longas que já fizemos. Fomos tocar em Maués-AM. A Terra do Guaraná. Acessível apenas de barco, doze horas de Manaus, nove de lancha, ou, no nosso caso, de avião. O aeroporto da pequena Maués não comporta pousos de jatos, então precisamos trocar de avião em Manaus. Nós fomos de Brasília, um avião para uns vinte e poucos passageiros da Embraer. A equipe foi de Bandeirante, o primeiro avião fabricado no Brasil. Não é pressurizado, quer dizer, voa baixo, no meio das nuvens, e sacode pra caramba.

Os aviões estavam fretados para a gente. São mais trinta e cinco minutos de vôo, depois das quatro horas de Sampa até Manaus. Os aviões são da Rico Companhia Aérea. Me lembro que um de seus aviões caiu na floresta, uns dois anos atrás, mas tento não pensar no assunto. Embarcamos, o avião é velho, ainda tem cinzeiros nas poltronas. Acabamento precário. À bordo, os seis músicos, Pedrão, Luciano e André. Uma simpática aero-moça, com milhares de horas de vôo, nos recebe muito bem. Ela está emocionada em ter-nos como passageiros. Mas, lamenta, não poderá nos servir cerveja neste vôo. Tudo bem, nos contentaremos com o exótico Guaraná Baré. Seus dentes da frente são separados, o que pode significar grande apetite sexual, eu li em algum lugar alguma vez. Também pode significar a capacidade de fazer um lindo chafariz.

Pensamentos sobre acidentes aéreos com bandas de rock passam pela minha mente, mas não deixo nenhum permanecer. Logo estamos sobre a floresta. É um tapete verde, uma maravilha da natureza. Os rios estão baixos, seus leitos são de um verde mais claro, no meio corre o filete d’agua. Estamos pondo em risco o maior tesouro natural do mundo. Imagino a conta do desmatamento, feita em milhares de campos de futebol. Tento imaginar qual o tamanho aparente de um campo de futebol, da altura que estou. Futebol, paixão de milhões. A floresta, ignorada por milhões, destruida por ninharia. Deixem ela em paz.

Chegamos antes da tempestade. No pequeno aeroporto, nada além de uma casinha com uma pista, olho para o horizonte e vejo pesadas nuvens. Trovões sacodem o ar abafado, encobrem os gritos de “Dinhoooo!”, de um pequeno grupo de fãs que veio nos receber, em suas motos, mantidos à distância por guardas armados. Fui descobrir depois que Maués é violenta, infelizmente. Porém, para a sua decepção, assim que descemos do avião, ainda na pista, entramos num ônibus escolar, a palavra “escolar” coberta por folhas de papel, e escapamos por um portão lateral. Seria a nossa van improvisada durante nossa breve estada.

Saimos do aeroporto seguidos por uma ‘motoata’, uma carreata de motos. A cidade é pobre, pequena, muitas casas de madeira e barro. Limpa, tranquila. Quando nosso avião sobrevoou a cidade antes de pousar, notei que o cemitério ficava praticamente no meio dela. Depois, conversando com alguns locais, eles confirmaram. Antigamente o cemitério ficava nos fundos, no fim da cidade. Mas como do outro lado tem um rio, a cidade acabou crescendo por trás do cemitério. Os mortos são duplamente respeitados em Maués. Não só tem uma última morada digna, como moram no centro. Não precisam pegar ônibus para irem à missa…

O nosso hotel ficava na avenida principal, um boulevard, com um jardim separando as pistas. As árvores do jardim são todas podadas, parecem um botão, ou uma moeda, redondinhas e achatadas em cima e em baixo. O Yves comentou, em um lugar onde existem algumas das árvores mais lindas e imponentes do planeta, na sua avenida principal o homem tenta demonstrar que é capaz de dominar a natureza, podando as arvores como um poodle de madame.

Me deitei no meu quarto simples, mas com ar condicionado funcionando e, principalmente, escuro. Ouvi a chuva chegar. Estava cansado, vinha de outro show em SP na noite anterior, havia dormido apenas três horas em casa e mais algumas no vôo. A chuva foi forte, com muito vento e trovões. Estava curioso para ver a tempestade, saber a cor dos seus olhos… Adoro chuva e vento, mas o cansaço era mais forte. Somente quando o som das gotas caindo no telhado diminuiu é que consegui me levantar. Fora do meu quarto, dois funcionários do hotel passavam o rodo no alpendre. Nossos quartos eram no primeiro andar, havia uma varandinha com cadeiras para os hóspedes ficarem apreciando o movimento na avenida abaixo, naquele momento nenhum. Fiquei entretido com as gotas fazendo círculos nas poças e com os pássaros que pousavam no fio elétrico bem à minha frente.

O Yves apareceu. Comentou que a chuva havia sido bem forte, especulou se não teria afetado o nosso palco, uma cúpula geodésica montada à beira-rio, numa praia formada pela baixa d’agua. Então ele lembrou que nossa equipe técnica havia decolado de Manaus depois da gente, então provavelmente tinha enfrentado a chuva durante o vôo. Ficamos calados, porque a idéia de tentar aterrisar um Bandeirante no meio de uma tempestade nos pareceu, no mínimo, indigesta. Será que o piloto tinha dado meia volta? Já era para os caras estarem chegando no hotel, e até agora nada.

De repente, um pequeno avião faz um sobrevôo, ao longe. Deviam ser os caras. O piloto, nada bobo, esperou a tempestade passar para voar. No Amazonas é assim. Nature rules, baby. Para vocês monoglotas, A natureza manda…benzinho! (continua)