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Com os Pés em Maués – parte 1

29/11/2010

Espaço Aéreo Brasileiro, 28/11/2010

17:59

Estamos voltando de uma das viagens mais longas que já fizemos. Fomos tocar em Maués-AM. A Terra do Guaraná. Acessível apenas de barco, doze horas de Manaus, nove de lancha, ou, no nosso caso, de avião. O aeroporto da pequena Maués não comporta pousos de jatos, então precisamos trocar de avião em Manaus. Nós fomos de Brasília, um avião para uns vinte e poucos passageiros da Embraer. A equipe foi de Bandeirante, o primeiro avião fabricado no Brasil. Não é pressurizado, quer dizer, voa baixo, no meio das nuvens, e sacode pra caramba.

Os aviões estavam fretados para a gente. São mais trinta e cinco minutos de vôo, depois das quatro horas de Sampa até Manaus. Os aviões são da Rico Companhia Aérea. Me lembro que um de seus aviões caiu na floresta, uns dois anos atrás, mas tento não pensar no assunto. Embarcamos, o avião é velho, ainda tem cinzeiros nas poltronas. Acabamento precário. À bordo, os seis músicos, Pedrão, Luciano e André. Uma simpática aero-moça, com milhares de horas de vôo, nos recebe muito bem. Ela está emocionada em ter-nos como passageiros. Mas, lamenta, não poderá nos servir cerveja neste vôo. Tudo bem, nos contentaremos com o exótico Guaraná Baré. Seus dentes da frente são separados, o que pode significar grande apetite sexual, eu li em algum lugar alguma vez. Também pode significar a capacidade de fazer um lindo chafariz.

Pensamentos sobre acidentes aéreos com bandas de rock passam pela minha mente, mas não deixo nenhum permanecer. Logo estamos sobre a floresta. É um tapete verde, uma maravilha da natureza. Os rios estão baixos, seus leitos são de um verde mais claro, no meio corre o filete d’agua. Estamos pondo em risco o maior tesouro natural do mundo. Imagino a conta do desmatamento, feita em milhares de campos de futebol. Tento imaginar qual o tamanho aparente de um campo de futebol, da altura que estou. Futebol, paixão de milhões. A floresta, ignorada por milhões, destruida por ninharia. Deixem ela em paz.

Chegamos antes da tempestade. No pequeno aeroporto, nada além de uma casinha com uma pista, olho para o horizonte e vejo pesadas nuvens. Trovões sacodem o ar abafado, encobrem os gritos de “Dinhoooo!”, de um pequeno grupo de fãs que veio nos receber, em suas motos, mantidos à distância por guardas armados. Fui descobrir depois que Maués é violenta, infelizmente. Porém, para a sua decepção, assim que descemos do avião, ainda na pista, entramos num ônibus escolar, a palavra “escolar” coberta por folhas de papel, e escapamos por um portão lateral. Seria a nossa van improvisada durante nossa breve estada.

Saimos do aeroporto seguidos por uma ‘motoata’, uma carreata de motos. A cidade é pobre, pequena, muitas casas de madeira e barro. Limpa, tranquila. Quando nosso avião sobrevoou a cidade antes de pousar, notei que o cemitério ficava praticamente no meio dela. Depois, conversando com alguns locais, eles confirmaram. Antigamente o cemitério ficava nos fundos, no fim da cidade. Mas como do outro lado tem um rio, a cidade acabou crescendo por trás do cemitério. Os mortos são duplamente respeitados em Maués. Não só tem uma última morada digna, como moram no centro. Não precisam pegar ônibus para irem à missa…

O nosso hotel ficava na avenida principal, um boulevard, com um jardim separando as pistas. As árvores do jardim são todas podadas, parecem um botão, ou uma moeda, redondinhas e achatadas em cima e em baixo. O Yves comentou, em um lugar onde existem algumas das árvores mais lindas e imponentes do planeta, na sua avenida principal o homem tenta demonstrar que é capaz de dominar a natureza, podando as arvores como um poodle de madame.

Me deitei no meu quarto simples, mas com ar condicionado funcionando e, principalmente, escuro. Ouvi a chuva chegar. Estava cansado, vinha de outro show em SP na noite anterior, havia dormido apenas três horas em casa e mais algumas no vôo. A chuva foi forte, com muito vento e trovões. Estava curioso para ver a tempestade, saber a cor dos seus olhos… Adoro chuva e vento, mas o cansaço era mais forte. Somente quando o som das gotas caindo no telhado diminuiu é que consegui me levantar. Fora do meu quarto, dois funcionários do hotel passavam o rodo no alpendre. Nossos quartos eram no primeiro andar, havia uma varandinha com cadeiras para os hóspedes ficarem apreciando o movimento na avenida abaixo, naquele momento nenhum. Fiquei entretido com as gotas fazendo círculos nas poças e com os pássaros que pousavam no fio elétrico bem à minha frente.

O Yves apareceu. Comentou que a chuva havia sido bem forte, especulou se não teria afetado o nosso palco, uma cúpula geodésica montada à beira-rio, numa praia formada pela baixa d’agua. Então ele lembrou que nossa equipe técnica havia decolado de Manaus depois da gente, então provavelmente tinha enfrentado a chuva durante o vôo. Ficamos calados, porque a idéia de tentar aterrisar um Bandeirante no meio de uma tempestade nos pareceu, no mínimo, indigesta. Será que o piloto tinha dado meia volta? Já era para os caras estarem chegando no hotel, e até agora nada.

De repente, um pequeno avião faz um sobrevôo, ao longe. Deviam ser os caras. O piloto, nada bobo, esperou a tempestade passar para voar. No Amazonas é assim. Nature rules, baby. Para vocês monoglotas, A natureza manda…benzinho! (continua)