Canibais sob cannabis

Espaço Aéreo Brasileiro, 26/11/10

15:40 hs

Porto Alegre ficou para trás. À frente, uma rota nublada e uma São Paulo encoberta.

Falta um mês para o ano acabar. O primeiro ano do resto da minha vida está chegando ao fim. Ano do Tigre, de mudanças drásticas, de ver o que era sólido se desmanchar no ar. Contudo, espero que este avião continue sólido, por muitas viagens ainda. Aviões se desmanchando no ar, só em Lost. Quando terminou a série, senti que algo na minha vida também estava acabando. A única série que segui na minha vida adulta. Fiquei triste.

O I Ching também falou em Desintegração. Mas o sentido profundo da Desintegração demora para ser percebido. Procuramos desesperadamente o Novo, para preencher o vazio, esta ânsia causa sofrimento, bebedeiras ao volante, grosserias com as pessoas amadas e uma vontade crescente de mandar tudo se fuder. O Novo não pode ser intimado, planejado, não obedece à nossa vontade. Ele já existe, mas se manifestará à seu tempo. Estamos dirigindo um carro com o vidro enlameado e não sabemos qual é o botão do limpador de pára-brisa. Vamos apertando os botões à esmo. Alguns deles acenderão algumas luzinhas, acionarão a buzina, nos entreterão momentaneamente. Alguns desligarão o motor, retardarão nossa viagem. Alguns reclinarão o banco, descansaremos. Um deles abre as portas, para aquela carona inesperada. Um deles aciona o ejetor automático, aí adeus carona… Só temos que tomar cuidado para não acionar o nosso ejetor… aí, adeus viagem. Mas como não sabemos qual botão é pra quê, tudo pode acontecer. Ou nada.

Tocamos em tantos lugares que eu nem sei por onde começar. Nem onde terminar, pois o melhor show é sempre o próximo… Eu esqueço todos os “Obrigado por uma noite inesquecível!”, bradados ao microfone, depois de umas duas semanas, no máximo. No começo da minha carreira eu lembrava de todos os shows feitos no ano! Será que vai chegar o dia em que eu vou acordar e não vou lembrar do show da noite anterior? Meda, meda…

O que fica são as coisas extraordinárias que acontecem, os eventos fora da rotina, as pessoas que conhecemos e os lugares novos que visitamos. O show em si, a interpretação das músicas, dificilmente permanece na memória, mesmo tendo sido extraordinário também. No fundo penso que o sentido maior desse blog, para mim, é deixar um relato desses momentos, pois até eles estão se perdendo.

Falando nisso, o que mais extraordinário aconteceu nestes últimos dias foi o nosso show em BH, para a Rádio Mix. Tocamos de tarde, ao ar livre, na Praça da Estação, no centro da capital mineira. O palco foi armado em frente ao prédio de uma antiga estação de trem. Um prédio belíssimo. Um dos locais mais bonitos onde já toquei. Normalmente tocamos à noite em recintos e arenas, todos iguais e horrorosos. Tocar em locais históricos, ou ao lado de belezas naturais, são raros. Mesmo os shows em praias costumam ser à noite. Lembro de um show em Alfenas-MG, no campus da universidade federal, um anfiteatro em meio à um bosque. Lembro da Pedreira Leminski em Curitiba, ainda com o Loro. Garoava, descíamos uma longa escadaria…

Enfim, BH arrasou mais uma vez. Foi um show épico, trinta mil pessoas ao entardecer, cantando juntas. Contudo, o melhor ainda estava por vir. O show acabou por volta das 19:00 hs, o dia ainda estava claro. A banda francesa Phoenix ia fazer um show no mesmo dia, às 21:00 hs. Consegui armar de ir com uns amigos, então assim que o nosso show terminou fui correndo para o hotel, tomei um banho e me mandei para o Chevrolet Hall. Pensei que meus companheiros de banda não perderiam a oportunidade, mas tirá-los do camarim foi impossível. Às vezes penso que o camarim é como um útero, de onde não queremos sair, onde ninguém entra, onde vivemos um momento seguro, repetido, isolados e auto-suficientes. O mundo exterior é um turbilhão de rostos e quereres, ávidos por mais uma foto, uma lembrança, uma roupa, a mão, o braço, o coração, a alma. (continua)

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14 Respostas to “Canibais sob cannabis”

  1. Marcinha Says:

    Nooooooooooossa “Às vezes penso que o camarim é como um útero, de onde não queremos sair, onde ninguém entra, onde vivemos um momento seguro, repetido, isolados e auto-suficientes. O mundo exterior é um turbilhão de rostos e quereres, ávidos por mais uma foto, uma lembrança, uma roupa, a mão, o braço, o coração, a alma. (continua)” TANTOS QUERENDO ENTRAR NESSE ÚTERO!!! (ESTRANHO ISSO) RSRS MAS SIM, UMA LEMBRANÇA, MÃO, BRAÇO, CORAÇÃO … ALMA! É TUDO Q QUEREMOS! Senti uma tristeza nesse post Fê! Melancolia… ou será q sou eu q estou assim … ta… vou escrever então bjs

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  2. Tânia Kuhnen Says:

    Fê,

    Cada vez mais aprecio teus textos! Você escreve de uma forma agrádavel, usa metáforas inteligentes e consegue fazer o leitor “mergulhar” no que você escreve…bjus

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  3. Yedda Says:

    Também adorava os shows na pedreira é uma pena estar fechada!Mas…esse texto mexeu com alguma coisa em mim que não sei expressar!Dirigir esse carro com vidro sujo e com receio de apertar o botão errado gera muita angustia!Acho que as vezes faço meu ‘útero’ em casa, fecho tudo, desligo o telefone, não quero que nada venha interferir no meu momento mais também anseio por outros momentos que sei que jamais vão caber comigo nesse útero! sei lá….espero a continuação pra saber se você decifrou a desintegração!Gostei muito! Beijos!

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  4. Andrea Luppi Says:

    Fê, sua sinceridade é encantadora. Que bom que posso ler você por aqui. Sem moderadores, sem mercado. Apenas o retrato da sua alma.
    Amei.

    Beijos*

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  5. Luciana Says:

    Todos querem uma lembrança,olhar,mão…me faz lembrar uma menina que ganhou a baqueta do show que vcs fizeram em Marau,se fez de difícil,vc deve lembar desse episódio…acho que ela não tem noção da alegria que essa lembrança faz no coração dos fãs!!! Bj Fê!!!

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  6. Thayná Tavares Says:

    Que texto lindo, poucos artistas conseguem se expressar tão bem quanto você.

    “Procuramos desesperadamente o Novo, para preencher o vazio, esta ânsia causa sofrimento, bebedeiras ao volante, grosserias com as pessoas amadas e uma vontade crescente de mandar tudo se fuder. O Novo não pode ser intimado, planejado, não obedece à nossa vontade. Ele já existe, mas se manifestará à seu tempo.”

    Me surpreendeu!
    E quanto ao final do texto, lembro do show de Campina Grande na Paraiba que enquanto todos os seguranças cercavam vocês, você foi o ÚNICO que olhou de lado (para mim, já que ao meu lado e atrás de mim só tinha parede) e acenou! Eu consegui ganhar a minha noite. E não precisei nem sequer entrar no útero, bastou um tchauzinho.

    Continue assim,
    um beijo,
    uma super fã sua e de Capital Inicial ;*

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  7. Renato Says:

    E ae Fê td bem ?

    Foram poucas as vezes que li algo que você tenha escrito…
    mas em todas elas eu vejo uma singularidade em vc…
    e tudo que me vem a cabeça no momento é…
    ” Se acalma que tudo vai dar certo ”
    Aproveite seus momentos, suas viagens e acima de tudo sua vida.

    Abração kra e se cuida

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  8. Geeh Fong - Recife Says:

    sensacional!
    😀

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  9. Patriicia Alvees Says:

    é, concordando com a ‘Yedda’ esse texto tbm mexeu com algo dentro de mim, com emoções já vividas mas tbm com vontades, sonhos a realizar. São muitos sentimentos, milhares de emoções unidas numa unica vontade, com um unico proposito: ser feliz nem que seja por ao menos um momento. E esse momento, o tão sonhado momento é dentro do ‘utero’ ou na porta dele, porque o que realmente importa é saber que ali está o maior dos motivos da nossa alegria: Vocês, Capital Inicial ! meu inicio, meio e fim ! obg por me darem a cada dia mais alegria e força pra continuar ! EUAMOVOCÊS ♥

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  10. Lily Says:

    Uau Fe

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  11. Nayara Says:

    Meu problema está nesse Novo e no que ele proporcionará.

    Bela metáfora. Estarei como sempre por aqui esperando a continuação ansiosa.

    o/

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  12. Magda Says:

    Eu sempre me pergunto por que quero passar nem que seja alguns segundos perto de vc’s? Depois de passar por isso tantas vezes.
    Rola um energia entre ídolo e fã que não acho explicação. Só sei que é bom.
    A frequência para vê-los diminui, conforme os novos compromissos da minha vida.
    Mas a intensidade do carinho só aumenta.

    Continua Fê.

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  13. Cristina Says:

    Oi Fê!
    Entendo vc perfeitamente, sei como se sente!
    Se cuida querido! Adoro vc!
    Bjss

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  14. CorrePaula Says:

    melancolie and infinite sadness

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