Será que o Fê vai voltar a escrever?

09/06/2019

via Será que o Fê vai voltar a escrever?

Será que o Fê vai voltar a escrever?

09/06/2019

Ontem, em Araçatuba, uma moça apareceu com o meu livro. Pra quem não sabe, eu publiquei um livro em 2012. Ela tinha conseguido o livro recentemente, estava encantada com o que havia lido, e queria o meu autógrafo. Fazia alguns anos que eu não autografava meu livro, bateu uma nostalgia. Meu livro é uma coletânea de blogs, ou crônicas, que eu escrevi entre 2006 e 2010. Vamos chamá-los de blogs, porque eram publicados na internet. Ela falou que eu deveria voltar a escrever. Não foi a primeira pessoa que me falou isso, nesses sete anos que se passaram desde o lançamento do meu livro. Uma vez eu disse que a escrita iria me libertar. Porque voltei para a prisão?

Porque parei? A primeira resposta, a mais fácil, são as redes socias. Durante os anos em que escrevi os blogs, a partir de situacões que vivi na estrada com a minha banda, o Twitter e Facebook nem existiam ainda, ou estavam engatinhando. Eu tinha um perfil no MySpace, e queria que as pessoas fossem lá ouvir o som que eu estava produzindo com o Hotel Básico. Meu plano super-secreto era que os fãs do Capital Inicial iriam ler meu blog, para saber das minhas impressões sobre os shows que eles tinham acabado de ver, e acabariam ouvindo as músicas do Hotel Básico que estavam lá. Mas fãs do Capital Inicial só querem saber do … Capital Inicial.

O Hotel Básico é meu xodó. Eu, quando formei o Capital Inicial, era um compositor. Escrevia letras, que formaram nosso primeiro repertório. Em 1988 comecei a compor música eletrônica, mesmo sem entender de harmonia e teoria musical. O computador permitiu que quem ouvisse música dentro de si, na cabeca ou no coração, mas não tocasse guitarra, baixo, ou piano, criasse música. Juntar notas e acordes numa coisa que poderia virar uma canção. Eu sou louco por canções. Adoro quando vejo uma combinação de letra e música tornar este mundo miserável mais amistoso, mais divertido e interessante. Ou perigoso e desafiador.

No ano passado, encontrei uma amiga minha de Goiânia. Eu a conheci no início dos anos 2000, após o sucessso do disco MTV Acústico. Ela falou que eu não participava das festinhas pós-show. Era uma das lembranças que ela tinha de mim. Pensei a respeito. Talvez fosse porque eu voltava para o hotel e ia escrever. Ou não era convidado. Quem quer saber de um azarão calado? Um autor famoso americano do seculo XX, falou que, quando estava escrevendo, não estava vivendo. Norman Mailer? Fitzgerald? Não sei. Procurei no Google, não apareceu esta quote. Mas, eu me lembro, quando estava escrevendo, eu saia do mundo, e encontrava outro, que eu criava na tela do computador a partir das minhas experiências. E, quando lia, sabia que tinha valido cada momento que havia passado ali, longe da balada mas perto de mim.

Um sentimento me acompanhou durante muito tempo. Eu achava que os outros estavam sempre se divertindo mais do que eu. A grama do vizinho é sempre mais verde. Essa ideia bizarra me levou, muitas vezes, a ser o último a sair da festa. E a arrumar problemas.

Quero voltar a escrever. Quero mijar na porra da grama do vizinho. Escrever é o oposto da música. A música acontece e depois some. Todos sempre voltam para mais, porque o que eles sentiram naquele momento foi transformador nas suas vidas. Escrever, ninguém está vendo. Mas, quem lê, encontra outro mundo, e se gostar, sempre poderá voltar.

Quando você escreve você está sozinho com seus demônios e fantasmas. Os anjos não aparecem porque sabem que não participam das melhores histórias. Eles te salvam pra você poder falar dos demônios, eles sim, que bagunçaram teu rolê. Rolê sem bagunça não é rolê. Esses demônios, você os exorciza nas palavras. Nas canções.  Exorciza ao mesmo tempo que agradece. Heaven is a place where nothing happens, disse os Talking Heads. Good girls go to heaven, bad girls go elsewhere. Queremos saber sobre as bad girls, né? E não queremos saber de lugares onde nada acontece, né?

Um pouco de mentira aí. Gosto de lugares onde nada acontece. Cada vez mais sinto vontade de sumir. Deixar o Fê Lemos descansar. Ser um sujeito sem predicados. O Antonio, quem sabe. Mas meus predicados me definem, é melhor você aceitar sua sombra, porque ela sempre estará ao seu lado…

No show de hoje em são Paulo, quando consegui olhar as pessoas nos olhos, no final do show quando fui para a frente do palco, eu vi dezenas, centenas, de olhos que brilhavam, extáticos, vivos, amando e ligados. Esses olhos, esses olhares, são o que perseguimos, o que nos faz sentir vivos, o sentido a este circo todo, uma razão para o perrengue que é a vida na estrada. Meu escritório é na praia, mas cobra um preço alto. 

A paixão de vocês vale o preço.

Seu Malvado Favorito

27/10/2016

Você anda pelas ruas

Procurando o que não vê

Olha pelas janelas

Faz de conta que não crê

 

Você me pede no balcão

Imaginando o que serei

Olhar perdido na multidão

Acreditando no que não sei

 

Implora o meu perdão

Enquanto paga pelo que não vem

Estragarei o teu controle

Te farei mais um ninguém

 

           Me deixa inundar teus olhos

           Cravar no meio dos teus sentidos

           Desintegrar o que é bom

           Ainda acha que tem abrigo

O que espera é desesperança

O que procura é a ferida

O que encontra é a armadilha

De quem abraça o inimigo

 

Farei cinzas sem pegar fogo

Restos sem ter comido

Serei dívida e prejuízo

Enquanto busca o olhar amigo

 

Darei presentes de amargor

Beijos de fel e de licor

A certeza que abandona

Enquanto deita, e desmorona

 

          Me deixa inundar teus olhos

          Ser a fonte do teu perigo

          Desintegrar o que é bom

          Ainda acha que tem abrigo

A bumba não tem co-piloto

27/03/2015

Uma noite anos 80 em 2015. Bem, quase. Tive que ir procurar meus óculos de leitura, os famosos óculos do vovô, pra poder escrever. Aqueles que vc compra em bancas de jornal e fica pendurado na ponta do seu nariz.

Uso óculos desde os, talvez, dez anos de idade. Mas sempre, apenas para ver ao longe. Quando a vista cansou, foi um sinal. A prova indefectível de que não é mais 1986. Nem 1974. Nem 1998. Três anos-chave na minha história. Deixo escrito este lembrete, para num futuro retornar e reviver nestas linhas meu passado.

Envelheci. Não, essa palavra é proibida. Sou apenas jovem há mais tempo. Uma das consequências de ser jovem há mais tempo é que durante todo esse tempo de oh, tanta juventude, muitas dezenas, centenas, milhares, milhões de crianças se tornaram adultas. As crianças são todas amadas, sempre. Quanto aos adultos, as adultas principalmente, o número de pessoas passíveis, possíveis, inevitáveis, de serem amadas cresceu exponencialmente. É muita gente pra amar. Um problema sem solução. Ou a solução de todos os problemas? Cartas para a redação. (Taí uma coisa antiga: cartas para a redação, Hj é msgs pro blog. Por favor.)

Indefectível (gostaram dessa?) vem daquela música duma banda bacana da terra do pão de queijo, todos muito lúcidos, no sentido de que com certeza se lembram das (provavelmente…) poucas besteiras que fizeram. Verdadeiros cavalheiros, educados e gentis, que um dia num show no Circo Voador, se não me engano, me receberam no seu camarim impecável, que tem torradeira, tortas da vovó, ferro de passar roupa, com certeza um aspirador de pó escondido em algum lugar, e me ofereceram seu estoque de cervejas importadas, verdadeiras preciosidades etílicas. Abaixo as cervejas de milho!

Eu, baterista falível e tosco, quando escrever minhas memórias darei ao curioso volume o título de “Eu não me lembro de nada – Memórias (?) de um baterista doidão.” Vai ser trending topics… em Timbuktu! Ou em Bauru. Foi lá que no início dos anos 2000 conhecemos As Garotas Que Dizem Não. Apelido justo criado pelo grande Fred Nascimento. Bauru? Talvez Botucatu… Amo os nomes das nossas cidades!

Enfim, existe um ditado que diz: Você nunca atravessa o mesmo rio duas vezes. Sei lá… Nesses trinta e três anos de estrada já fomos dezenas de vezes pra Belo Horizonte, por exemplo. Milhares de quilômetros dentro de ônibus surfando as graciosas e perigosas curvas das estradas mineiras.

Sempre cruzamos os mesmos rios. Mas a água que está passando não é a mesma. É isso que o ditado quer dizer. Na verdade, o que importa: a ponte, aparentemente sólida, eterna, irremovível? Ou a água, fluida, mutante, caprichosa, que seca e enche, que alimenta e afoga, que seduz e atemoriza? Bem, se não houvesse água não haveria ponte. Mas só existem pontes porque o homem ( a mulher não, ela ficou em casa assistindo novela e mandando msgs pra seus ídalos) resolveu fazer caminhos.

Brincadeira, tá garotas… Admiro as engenheiras!

Caminhos, pontes, rios. Lembrei de uma letra do meu surpreendente e ainda desconhecido livro, Alguma Mania, que quando publicado, trará percepções, indagações, e quiçá, conclusões…

O Rio001

Ainda bem que nunca tivemos um co-piloto suicida. Temos o Cida. Mas ele é homicida, não suicida! Ele mata o tempo. Come as estradas. Devora os quilômetros. Faz picadinho de distâncias imensas em tempos relativos. Seguros.

Já tivemos muitos motoristas, principalmente nos anos 80 e 90. Depois do sucesso e estabilidade que o Acústico nos proporcionou, passamos a trabalhar só com uma empresa. Que percebeu que era vantajoso montar um ônibus só pra nós. Configurado do jeito que queríamos. Um pequeno luxo depois de duas décadas dormindo em ônibus vira-leito.

Nos anos 80, para cada viagem se negociava um ônibus de companhias diferentes. Às vezes, se repetiam condutores e carroças. As empresas que trabalharam mais tempo com a gente ofereciam ônibus decadentes e motoristas competentes, porém muitas vezes extenuados após centenas de quilômetros mal dormidos.

Lembro de um dia, depois de um show em Minas Gerais. Já ouviram falar, Minas Gerais? A caixa d’água do Brasil. Pedaço de terra encravado no coração da pátriamada, famoso por suas curvas, as das mineiras principalmente, e morros sem fim. Não é legal morrer. É pior morrer caindo de um morro. Morrer nas curvas de uma mineira, porém, tem salvação. Ainda bem que nunca tivemos um co-piloto suicida.

Nos ônibus vira-leito, não havia poltronas leito. A única opção para conseguir dormir sem ser sentado (castigo nazista), era usar sua mochila, ou enrolar seu casaco ou cobertor, quando um havia, e assim criar um travesseiro tosco. O pseudo-travesseiro era acomodado no banco ao lado da janela, e os valentes músicos se deitavam atravessados na bumba. Suas pernas cruzando o corredor, seus pés na poltrona do outro lado. Quando eu conseguia encontrar uma posição minimamente confortável, me sentia tão feliz! O próprio rei na sua cama king size! Vocês não devem saber, mas o banco do baterista, em inglês, se chama drum throne. Trono da bateria. Os bateristas são os reis mais fodidos do planeta. Mas isso é outra história. (eu sei que vocês adoram isso…)

Enfim… Nesse dia, nessa estrada, nessa curva, eu de repente acordei por causa de um terrível sacolejo, mesmo apesar do sono profundo provocado pelo abuso tradicional de substâncias que se seguia após os shows.

O ônibus tremia de um jeito que nunca havia sentido. O que poderia ser aquilo, pensei, uma ponta de medo invadindo o meu torpor, atrapalhando o necessário foda-se que ligamos sempre que estamos na estrada. Se você tem medo, não saia de casa.

Tomei coragem e abri um pedacinho da cortina para olhar a estrada. Me lembro de árvores e arbustos passando velozmente, perto da janela. Eu estava com a cabeça e o corpo num banco no lado esquerdo da bumba, meus pés no banco do corredor do lado direito. Sabia, pela força que me empurrava para fora do meu banco, que o ônibus estava fazendo uma curva para a esquerda. Se fosse para a direita eu estaria batendo a cabeça no vidro.

– Que curva de merda – pensei.
– O que foi, acabou ou asfalto?
– Caralho, essa merda tá sacolejando como eu nunca vi… – e então olhei pra fora de novo.
– Ué… a curva é pra esquerda… porque as árvores estão tão perto da minha janela…? – Deveria haver metade da pista separando a bumba do outro lado da estrada … então o horror sorriu e disse : – Oi! Estou sempre do seu lado, amiguinho…

O ônibus não estava na pista que deveria estar. Ele estava na contra-mão. Mas não só na contra-mão. Ele estava solto, desembestado, e… no acostamento da contra-mão! A compreensão me atingiu como um raio. Entendi que nosso piloto estava, a todo custo, num último esforço, tentando, a derradeira, a decisiva manobra, que talvez pudesse evitar nossa catástrofe.

No penúltimo segundo eu pensei: … talvez nossa catástrofe. Talvez o nosso fim. Mas… o que eu podia fazer?

Fechei a cortina, me ajeitei no vira-leito e apaguei antes de saber se nosso piloto tinha conseguido terminar a curva.

Escrevo pelas 149 vítimas de um piloto que jogou o ônibus, ou avião, pra fora da pista, de propósito. Escrevo por todos os pilotos que cuidaram, e cuidam, de nós. São os verdadeiros reis dessa bagaça, sentados no verdadeiro trono da estrada.

E escrevo porque, nos anos 80, eu sempre escrevia doidão!

Mas, não é mais o mesmo rio.

Quem não tem blog caça com letra

18/03/2015

Canção de despedida

A solidão só aumenta
A tristeza é a velha
Companheira

Sobraram selecionadas
Lembranças apagadas
De momentos esquecidos

Os amores fragmentos
De rotas mal traçadas
De apostas derrotadas
O que me resta é nada

Escolho moças brancas
De certezas duvidosas
Abraço vidas novas
De sabor misterioso

O mistério cai com o véu
O vaso quebra à terra

Quando provo o desgosto
No rosto de quem se afasta
Quando rasga o desprezo
De quem disse que ficava

Aposto que você pensa
Que essa cancão é pra você
Meu bem, você pode ter certeza

A tristeza é a nova
Companheira

O que é cor-de-rosa e duro?

05/03/2015

Cara, cuidado! Não olha pra trás! Quinta-feira passou, sexta está quase no fim! Oh não,  o terrível monstro cadêoblogdofê está nos meus calcanhares! Caraca, não tem nenhum poeta fajuto pra distraí-lo, enquanto eu tento escrever algo inteligente? O quê? Foram levados pelas chuvas de SP? Oh não… Já não basta o meu guarda-roupa, destruído pela cachoeira que virou o telhado do meu prédio, torrentes descendo pelas paredes, inundando gavetas, prateleiras, armários, ensopando blazers vintage, chapéus estilosos, camisetas inigualáveis? Putz, onde estão todos os letristas amargurados de meia pataca? O quê? Foram para o show da Plebe? Não, não…

Ah, o blog… Que absoluta falta de assunto… Mentira! Vou falar de uma aventura gastronômica que tive esta semana. É o que todos dizem: na crise as pessoas cortam tudo. Menos a comida. Comida sempre será um assunto. A falta dela também, embora este seja um assunto que embrulhe o estômago.

Hoje é o meu último dia de férias em Floripa. Resolvi ficar mais uma semana aqui porque no sábado seguinte (amanhã) eu teria (tenho) um show em Tubarão, 150 km ao Sul daqui. Pensei, meu filho volta (voltou) com a babá para SP, no domingo depois do Carnaval. Eu estico (estiquei) mais uma semaninha. No sábado encaro (encararei) os 150 km até Tubarão, um mero passeio pra quem faz (fiz) SP-Brasília, 1000 km, sem parar, com uma mão nas costas… quer dizer, com as duas no volante. Não dá pra bobear na estrada. Hum, bobeei, mas isso é outra história (eu sei que vocês adoram isso…!)

Após o show, encaro os 860 km de volta, sozinho, porém satisfeito por ter velejado e feliz por ter voltado a tocar bateria com meus amigos. Um plano perfeito para poder me dedicar à nobre arte de velejar sem dó nem piedade.

Nada como um plano perfeito para dar tudo errado. Só que o sobrou foi dó e a piedade, porque vento que é bom, necas de pitibiribas. Destes cinco dias, em apenas dois consegui velejar, e em apenas um o vento foi forte o suficiente para fazer este calejado baterista esquecer de onde veio e para onde supõe que vai.

No outro, treinei com tranquilidade, mas foi um velejo de treino, não de bliss, sublimação, epifania e outras palavras bonitas que vocês ainda não devem ter experimentado. Hey, dá uma chance pros caras… Hum… all quiet and no sail makes Fê a dull boy…

No domingo, um pouco antes de eu levar minha turma pro aeroporto, a Káti, a melhor babá do mundo, do meu filho, tá gentes, porque eu não preciso mais, embora existam dúvidas, olhou para mim, apontou pra geladeira e com um sorrizinho disse:

– Fê, não vai deixar essa comida aí dentro, hem? Apodrece tudo…

Ali, naquele exato instante, eu vi a sabedoria de alguém que me conhece um pouco. Após anos acompanhando minha absoluta inaptidão frente ao fogão, lançou um alerta: pelo menos não deixa a bóia apodrecer na geladeira, mané… joga fora antes de ir embora!

Ela estava certa de que, assim que partissem, eu retornaria à rotina de restaurantes de quilo, rodízios de pizza e sushis que abundam pela Ilha. Minha geladeira nada além de um triste depositário de tomates murchos, batatas com lindos brotos nascendo, pepinos enrugados e quentinhas com sobras há muito esquecidas, uma profusão de embalagens de isopor e sacos plásticos sem identidade e com cheiros suspeitos. Pobre geladeira…

Mas, ha! Resolvi surpreender à todos, começando por mim mesmo! Não ia deixar todo aquele rango estragar. Pra cima de moí, non! Seria eu capaz de aproveitar aquela matéria prima e transformá-la em alimento para a alma? … hum … para o estômago? Para a alma, o visual de Floripa e meu iTunes com 180GB de música estavam quebrando o galho.

Vasculhei o congelador. Encontrei uma caixa de papel no formato de um tijolo. Dentro, rodelas de um produto amarronzado duro que nem pedra chamado… hum… hambúrguer. Tá, pensei, esse eu sei fazer desde criança. Ainda por cima tem instruções impressas na caixa! Legal!

Eu preciso dizer, em minha defesa, que eu sei fazer arroz! Inclusive, soltinho! E, suprema habilidade, ainda refogo uma cebola antes de cozinhar o sagrado grão! Prèsque un grand-chèf! Posso não saber cozinhar, mas até que me viro no francês…

O hambúrguer foi fácil, quer dizer, só depois que achei meus óculos pra vista cansada. Aqueça a caixa até 180 graus… O quê? Rasgue a frigideira para acender o óleo… Hem? Cozinhe o cabo da panela em fogo brando… Péra aí… Malditas letras miúdas embaralhadas.

O hambúrguer foi fácil, o arroz ficou bom,  a salada não ofereceu mistérios. O problema foi… e o dia seguinte? Esse é o GRANDE problema de cozinhar. Sempre tem o dia seguinte. Repetir a comida, apesar de ser aceitável em situações de extrema penúria e acampamentos da turma, não é uma opção. Então…

No dia seguinte, vasculhei novamente o congelador. Hum, …o que será esta coisa dura que nem pedra, com uma cor rosada…? Não, não é o que vcs estão pensando… É peito de frango! Oba! Mas, hum… parece diferente de hambúrguer… será que cozinha do mesmo jeito? …  Hum, não tem nada escrito na embalagem, só avisos pra não recongelar depois de descongelado, não ser a única fonte de alimentação para lactantes, salvo sob prescrição médica, não arremessar na cabeça do irmão caçula… e ah, muito importante: Não contem glúten! Agora me senti aliviado!  Mas nada que explicasse como preparar o bendito fruto da granja.

Bem, algo me dizia que primeiro precisava descongelar aquela pedra de carne. Olhei no microondas, tinha lá a função ‘descongelar’ e o desenho de uma galinha. Oba, pensei, deve ser por aqui! Coloquei o alimento numa tigela razoavelmente funda e apertei o botão. Apareceu o número 16:00, e em seguida começou a contar pra trás: 15:59, 15:58, etc. – Leva tanto tempo assim, pensei? Hum, dá tempo de preparar o… molho! Peguei uma cebola, um pimentão meio cansado de guerra, piquei e deixei de lado. Reservei, um mestre-cuca diria.

Estava tudo indo bem, até o microondas desligar. Verifiquei, o frango havia descongelado parcialmente, parecia o governo da Dilma. Gosmento, meio mole por fora, mas com um núcleo duro… Achei esquisito, apertei de novo os botões, a geringonça voltou a funcionar. Mais alguns minutos, parou de novo. A Dilma não entregava os pontos, mas o núcleo duro havia diminuído mais um pouco. Os companheiros estavam abandonando o prato…hehe!

Até que finalmente, depois de vários ligas/desligas, eu estava de posse de dois pedaços de carne rosada um pouquinho mornos. Eu olhava e pensava – Pô, se eu fritar isso vai ficar carvão por fora e muxiba fria e rosinha por dentro… Meu Deus, o que eu faço…? Então… EUREKA! Pergunta pro Google, mané! Lá fui eu, lépido, faceiro, esfregando as mãos gordurosas na bermuda, fuçar no meu laptop.

Escrevi na linha de comando “Como preparar um peito de frango” e vieram várias dezenas de links! Fiquei entusiasmado! Cliquei em um onde apareciam diversas fotos… pratos lindos, apetitosos, porém aparentemente dificílimos de serem preparados. Outros pediam ingredientes exóticos tais como caldo de carne (caldo de carne? Como assim caldo de carne pra preparar um frango? Depois eu é que não sei cozinhar…), farinha de rosca, cheiro verde, cominho. Cominho? Comecei a suar frio…

Então, eis que surge o link salvador: como preparar um frango cozido! Era isso! Se eu cozinhasse o pectus fartus, ele ficaria todo branquinho (era o que dizia lá). Eu lembrava de frango todo branquinho! Já havia comido antes! E, por uma incrível associação causal, pensei que se eu fritasse um frango todo branquinho, ele poderia ficar queimadinho por fora e quentinho por dentro! Que nem os que a mamãe fazia! Uma onda de entusiasmo, orgulho e sentimentos de conquista e realização invadiu o meu corpo! Eu ia conseguir!

“Pegue o pedaço de frango e ponha na água fervente.” Sim, claro, aí estava uma instrução que eu conseguia entender e seguir! Em breve a água borbulhava, lentamente tornando-se leitosa, com alguns pedaços de uma gosma branca suspeita boiando na espuma. Aquilo não parecia muito certo. Mas onde poderia ter errado? As instruções eram tão claras… Voltei ao laptop, comecei a ler novamente a receita. Lá estava… no afã de querer preparar o prato rapidamente, eu pulei algumas linhas. Elas diziam simplesmente: “Lave o frango antes de fervê-lo.” Ah tá.

– Deve ser por isso que o apressado come cru…, pensei, enquanto cogitava lavar os frangos naquele momento. Mas num rasgo de bom senso decidi deixar tudo como estava. O calor mataria as bactérias, e o que não mata engorda. Acompanhei com aflição enquanto meus peitos chafurdavam naquela espuma fervente e borbulhante. A receita dizia de 15 a 20 minutos para pedaços de frango inteiros, mas eu não conseguia me afastar. O olhar do esfomeado cozinha a carne.

Depois de longos e tortuosos minutos, desliguei o fogo, joguei a água fora sem jogar o bebê junto, e examinei as carnes. Estavam branquinhas! Ainda dei uma abrida com a faca para investigar seus interiores, realmente estavam brancas por inteiro! Acendi o fogo da frigideira, coloquei um pouco de óleo e… fiquei olhando, refém de uma dúvida atroz: frito o frango primeiro ou a cebola e o pimentão? Me parecia lógico fritar o frango primeiro, mas pensei que sem os vegetais o frango não pegaria o sabor deles… Mas, se eles fossem juntos para o fogo poderiam esturricar antes do frango ficar pronto… enquanto isso o óleo esquentava, esquentava, esquentava… então decidi. Joguei tudo pra dentro da frigideira, ao mesmo tempo, agora, unidos e coesos. Assim que a água que estava nos frangos encontrou o óleo quente, uma nuvem de vapor ergueu-se instantaneamente, enquanto minha mão queimava na chuva de gotículas de água e gordura que espirrou em todas as direções…

A história tem um final feliz. Consegui cozinhar o frango, que rendeu três refeições. Ficou aceitável.  Deveria tê-lo lavado antes de ferver. Deveria tê-lo fervido junto com a cebola, o pimentão e outros temperos. É nessa hora que ele pegaria o gosto. Mas isso um passarinho me contou, quando Inês, além de morta, já estava cozida.

A geladeira está bem mais vazia, vai sobrar pouca coisa. Eu aprendi. Se tivesse prestado um pouco mais de atenção nas instruções, lido antes de começar a cozinhar, teria feito um bom prato. Sem afobação e com atenção, cozinhar pode ser uma maneira de você se encontrar consigo mesmo. Passar um tempo sozinho sem angústia. Uma meditação. No meu caso, ainda é uma confusão. Mas eu chego lá!

RIP Negrete

22/02/2015

Mais um amigo que se vai. Mais um da turma de 62, se não me engano. Cara, queria apenas dizer que eu me lembro de quando eu te conheci. Na verdade, eu conheci tua reputação antes de te conhecer.

Todo mundo falava de um tal de Negrete da 8. Era o cara mais forte da parada. Tipo assim, ninguém podia nem pensar em se meter com esse tal de Negrete. Lembro disso, de imaginar um cara forte demais, que poderia acabar comigo com um simples peteleco.

Eu tinha dezesseis anos, estava começando a conhecer a turma da 8. O Geruza. Mais tarde o Loro. Tinha o Neuto, era esse o nome? Tinha alguns outros que não lembro o nome agora, mas lembro dos seus rostos. Todos falavam de você.

A 408. Um território selvagem para este nerd que vivia protegido na distância da Colina. Mas o pessoal da 8 começou a nos frequentar. O ima do punk rock, atraindo aqueles deslocados, desclassificados, párias da disco music e da caretice geral brasileira do final dos anos 70.

Tinha o Baile da ASCB. Todos domingos. O único lugar para ir próximo, dava pra ir a pé. Ia toda a galera da Asa Norte. Eu me lembro do medo que senti as primeiras vezes que fui. Lembro de algumas outras coisas. Mas neste momento, eu me lembro claramente de quando, finalmente, vi pela primeira vez o tal do Negrete. Aquele ser que povoava meu imaginário, o habitante da 8 mais forte do mundo, capaz de destruir nerds magrelos de óculos num piscar de olhos, Eliminador de Haoles e CDFs, o nemêsis do punkzinho filho de professores universitários.

Na porta da balada, olhava de rabo de olho, preocupado, tenso, esperando a qualquer momento me deparar com o Destroçador…

Eis que então alguém me aponta, cochichando, num certo domingo de 1978:

– Olha lá, aquele é o Negrete! Mas disfarça, não olha direto…

Então eu vi. O cara era negro. Forte. Muito forte. Tipo, os braços eram da grossura das minhas pernas. Um pescoço de tronco de árvore.

Mas… algo me chamou a atenção. Não era a força física. Ela estava lá, mas, surpreendentemente, não era o principal do quadro. Me lembro de vê-lo sorrindo, a primeira vez que botei os olhos nele. Me lembro que não vi a animosidade, a raiva, o terror que esperava encontrar.

Agora eu sei o que eu vi. Eu vi Gentileza. Educação. E, assim, naquele mesmo instante… perdi o medo! Agora percebo que havia encontrado uma pessoa iluminada, embora na hora apenas senti meu coração mais leve. Por ele ser amigo dos meus novos amigos,  por enxergar nele o lado Bom da Força,  me senti tranquilo. Protegido. Eu era amigo do Negrete. O cara mais forte da balada. Ele era um cara legal!

Agora eu era seu amigo, mesmo sem ele saber que eu existia. Eu estava a salvo dos babacas. Eu era amigo do Negrete. Eu era um punk, ele andava com meus amigos punks, ele era um dos nossos. Ninguém mexia com ele. Ninguém ia mexer comigo. Nem com minha turma. O nosso salvo-conduto. O Negrete.

Descansa em paz, baixista extraordinário. A gig no céu está cada vez melhor. Pena não podermos ouvir vocês tocando. A mediocridade aqui embaixo está precisando. Muito.

Eu passeei no Jardim do Patinho Qué Qué

21/02/2015

Sábado, 21/02 – 12:34

A semana passa e eu sei que está chegando. O prazo é sábado. Se estiver seco, desidratado, volume morto de ideias, inspiração, vontade, desejo, enfim, tudo que me move, posso deixar pra domingo. Mas aí a pressão é insuportável. porque segunda, se não estiver publicado, vão começar as indagações, preocupações, reclamações, conjecturas, semjecturas e outras uras a mais, puras ou impuras, seguras, inseguras ou simplesmente tiros à escura. O Fê parou de blogar? Cadê o Blog do Fê? Poxa Fê, você é tão legal, adoro tudo o que você faz, não pode nos abandonar…

Tá bom, desculpa aí! Era só pra desabafar. Ou pra gastar esse começo logo, o ”estou sem inspiração mas preciso escrever”. Pronto, já foi. Fê, o Super-chato. Pelo menos agora eu estou certo de que não poderei começar um blog dizendo que não sei o que escrever. De novo. Quem sabe? Super-chato!

Um caro amigo me escreveu pedindo pra eu falar dos eventos de Agosto do ano passado, “o começo da turnê”, nas palavras dele. O começo da turnê… a turnê, meu querido amigo, começou há trinta e três anos atrás. É a Turnê Interminável, para o bem ou para o mal. O que existe hoje é muito diferente do que existia há anos atrás, embora as pessoas pareçam as mesmas.

Será que as pessoas são as mesmas? Será que alguém muda, na sua vida? Será? Aprendemos com nossos erros? Será? Hum, deixamos de fazer certas coisas, começamos a fazer outras. Isso é certo. Algo que era importante quando tínhamos dezoito anos, como por exemplo, tomar refrigerante (pode substituir o verbo por qualquer outro relacionado ao ato de trazer alguma coisa que está fora para dentro do seu corpo;  o predicado, por qualquer substância à gosto do cliente/usuário), deixa de ser importante.

Passamos a utilizar outras substâncias, ou todas juntas, ou elaboramos dietas complicadas, esotéricas, telúricas, no afã de (des)controlarmos a ingestão das mesmas… Elas sim, nos definem, nos identificam, nos individualizam. Afinal, somos o que comemos!  – O que? – a vovó gritou: Somos quem comemos?… Hum… Mas será que mudamos, somos outros, só porque largamos o açúcar e passamos para o adoçante? Ou para o café sem açúcar? Hum… sem açúcar não! Açucar mascavo neles.

Acho que sou o mesmo ainda. Apenas mais temperado. Minha impaciência está temperada, minha insegurança temperada, meus medos temperados, minha chatice hum… temperada? Apimentada? Pimenta é tempero! Minha sensibilidade (?) hummmmm… temperada? Aguçada? Adormecida? Adoçada? Sensibilidade adoçada? Hum, que nojo… Melhor comer miojo e arrotar espaguete!

Será que envelhecer é acrescentar tempero? Bem, os pratos sempre melhoram quando temperados. Só não pode errar a mão. Mas é errando que se acerta a mão. Então, será que envelhecer é acertar a mão nos temperos, e nos tornar melhores cozinheiros? Bem, dizem que a variedade é o tempero da vida… Então quem tempera varia? Ou quem varia tempera? …Hum, mas não é a panela velha que faz a melhor comida? …Hum… pera aí, então o velho que tempera a panela faz a melhor comida? Ou é a vida que varia na panela que tempera o velho? A melhor comida do velho tempera o desvairio da vida? … HEY! … Hum, acho que meu prato está esfriando, um resto de muxiba sem sal… Não vá perder a metáfora, dear old boy.

Em casa só tem gororoba/Pelanca olha que droga/Pô não aguento mais/Mamãe só pisa na bola/

Estes, meus caros, são os primeiros versos da minha primeira letra, se não me engano (se não me engano que é minha primeira letra. Porque são os primeiros versos e a letra é minha mesmo). Uma pequena e saborosa obra-prima punk, chamada “Pão Com Cola”, escrita quando eu era apenas o barulhento baterista do Aborto Elétrico. Inspirada em fatos reais. Não relacionados à minha querida mãe, que, embora não apreciasse muito ser piloto de fogão, fazia um arroz com feijão decente. Não, é uma história verdadeira, suculenta, que aconteceu num dos acampamentos da turma, quando nós, exigentes gourmets, fomos apreciar uma tenra e farta lata de Cascolac. Detalhes num próximo blog… (vocês não adoram isso?)

Mas voltando a vaca fria… hehe…

OK, vou cantar pra vocês minha versão de “Tudo Que Vai”. O novo título é “Tutu Com Paio”. O clipe, vocês precisam imaginar… será que vocês conseguem visualizar o CI sentado à mesa, toalha xadrez de cantina italiana de segunda manchada de molho de tomate, os seis adoráveis músicos que vocês amam adorar, com os guardanapos também manchados de batom e restos indecifráveis de sopas antigas presos aos colarinhos, batendo os talheres na mesa que nem canibais, cantando num arranjo mezzo tarantela mezzo opera bufa (de soltar uma bufa mesmo, hehe…)?

– “Hojeeee tem pizaaaaa/Eu até posso sentir o cheirooooo/De queijuuuuuu raladuuuuu/Misturado com cebola/ E alhuuuuu/Eu lembro dos bifes que eu não comiiiiiiiiii/Fritando sem parar/Para o jantaaaaaar

E lá vem o refrão:  – “Tutu com paio/Deixa um gosto/Azedo amargo/Quanto tempo faz/Só como quiabo/Nos dentes fiapos/Eu não aguento mais!”

Quem mandou? Vocês pediram…agora segura!

Arrôut!

Viva os gominhos! Crápulas, nem engomados…

14/02/2015

Mais um Carnaval começa na Terra do Carnaval. Mais uma vez eu pretendo passar estes dias longe da folia. Mais uma vez estou na Ilha da Magia, dessa vez com meu filho. Ontem fomos à praia no final da tarde, sua primeira vez em águas catarinenses. Como é bom vê-lo largar tudo, jogar os chinelos pra longe, tirar a bermuda correndo, arrastando sua pranchinha de bodyboarding pela areia enquanto se joga feito um desesperado ao mar, como se aquele montão de água pudesse desaparecer em um instante. Nisso somos tão parecidos, nessa paixão irrefreável pelo mundo das ondas, correntes e mistérios…

Uma da manhã. Acabei de voltar de um encontro com duas amigas muito queridas, a Fabi e a Karina. Elas foram tomar uma cerveja num bar aqui perto, o Sufoco. A Karina me escreveu a pouco, perguntando se eu já tinha chegado à Ilha, contando que estavam indo para lá. Ela veio passar o Carnaval com sua amiga, que conheci quando vim pra cá mês passado. Uma amiga dos anos 90, uma amiga do século XXI. Amizade é tudo nessa vida. A Ká está passando por um momento difícil na carreira, depois de ter se envolvido com um crápula, não emocionalmente, profissionalmente. Talvez tenha que deixar SP e tentar um recomeço em outra cidade.

Crápulas são piores que ignorantes. Um ignorante pode, provavelmente vai te prejudicar, mas ele está num nível primário de abstração e raciocínio. Ele vai te prejudicar porque é um estúpido. Já um crápula é diferente. Ele é maquiavélico. Ele planeja o mal. Ele vai te prejudicar sendo doce, companheiro, teu melhor amigo. Você vai se abrir com ele, vai trazê-lo para debaixo dos seus braços. Vai contar todos os seus planos e segredos, mostrar aquilo que nunca mostrou para ninguém, porque você confia nele, vocês juntos formam uma dupla, incansáveis, imbatíveis, o mundo será nosso e riremos dos babacas depois, bebendo caipirinhas na nossa ilha em Angra dos Reis. Ha ha.

Até você se ver na rua da amargura sem saber exatamente porque, e, quando busca a mão amiga, ela está longe, faceira, serelepe, usufruindo das suas ideias, da sua energia, da sua vida, que você entregou de mão beijada e ainda não entendeu o que aconteceu. A ficha demora pra cair.

Boa sorte, querida Karina, que os deuses do acaso te favoreçam mais uma vez. Resista ao pior mal que pode nos acometer: perder a coragem de tentar novamente depois da derrota mais sofrida.

Mas hoje é Carnaval! Vou fazer que nem o jornal da TV: falarei de uma desgraça e imediatamente após vestirei meu sorriso Bonner e celebrarei os percussionistas mirins que são a expressão máxima da nossa raça, do nosso traquejo, da nossa malemolência, da nossa superioridade frente aos outros povos desse fecundo planeta!

Porque, oh! se Deus é brasileiro então nós somos seus diletos filhos, os escolhidos, os iluminados, a mistura perfeita de sangue, suor, suíngue e o caralho a quatro. Principalmente o caralho a quatro. Ou o caralho de quatro. Sutis diferenças causam surpreendentes mudanças.

É Carnaval e eu estou aqui, no meu apartamento nesta noite chuvosa em Floripa, escrevendo. Nem música estou ouvindo neste momento, porque trouxe o laptop pra mesa pra escrever melhor. Tive que desconectá-lo das caixas de som. Conexão com fio? Irremediavelmente old school, você diria.

Irremediavelmente feliz eu estou me sentindo, sou obrigado a dizer! Meu filho dorme tranquilo no seu quartinho. Amanhã conseguirei acordar antes dele, ao invés de ir dormir na hora em que ele acordar.

Vamos tomar café da manhã juntos… eu implorando pra ele tomar logo o seu suco de laranja, ele reclamando que tem gominhos e ele não gosta.

Mania que pegou da mãe. Se ela não tivesse falado nos tais benditos gominhos, ele nunca ia saber que existia uma coisa chamada ‘gominhos’! O suco seria uma coisa só! Quando você fala ‘uma parede’, você nem lembra que ali existe cimento, areia, tijolo, água, mão de obra, etc. É apenas uma parede. Serve para pendurar quadros e deixar o ladrão de fora. Imagina falar, “ah, eu não gosto dessa parede porque a areia que tem nela não é branquinha…?”

Agora um suco de laranja para o meu filho não é mais O suco. É uma combinação de dois elementos: uma água amarela e os tais gominhos! Eu nunca me liguei que existiam gominhos no suco. Eu tomo aquele copo cheio e pronto. As vezes até mastigo a parte sólida que vem junto… Só depois de adulto é que vim a descobrir que esta ‘parte sólida’ do suco é rica em fibras e faz bem pra gente!

Os pais tem que pensar no que falam para os filhos! Eles são máquinas de xerox vinte e quatro horas ligados no mundo dos adultos. Falou que não gosta de gominho? Ele nem sabe o que é, mas a partir de agora não gosta também. E pronto.

Logo começa aquela meia hora de intenso suspense, as derrubadas ‘involuntárias’ de copos, uma mão segurando um dito cujo ainda cheio, se inclinando perigosamente sobre um iPad coberto de farelo de pão, enquanto a outra mão segura um gibi já transparente de tanta manteiga, o pai gritando – “Pô, termina logo esse suco!”, o chorôrô, a birra – “Se gritar de novo aí é que eu não tomo!”, supremos desafios matinais que servem à nobre causa de nos forçar a refletir a respeito da grandeza de espirito necessária à paternidade!

Mas mesmo assim/eu estou quase certo/que eu faria tudo de novo/… Ah, esses versos são meus, tá? Assim como a letra toda. Só pra constar.

Quase certo que nada! Cem por cento certo!!! Só pra constar… 😉

P:11/11/11? R:8/8/88!

09/02/2015

Depois de uma noite excruciantemente longa, recheada de excessos que se estenderam até momentos de exaustão e tensão, consegui descansar. No final da tarde peguei minha bike e fui procurar um restaurante para almoçar. Estava sozinho como de costume, pensando nas peças que o destino nos prega. Quando gostamos de alguém que não gosta da gente, por exemplo. Terrível castigo. Ou a irresistível atração pelo perigo para alguns de nós.

Eu li num post eu acho, ou era uma foto no Instagram. Sei lá, não consigo lembrar. Mas lembro muito bem do que li: “A paz que você procura está no silêncio que você não faz.” Queria eu ter escrito essas sábias palavras. Ué, dirá você, mas o que importa não é fazer barulho? Vamo bate lata? Panelaços? Um moleque de quatorze anos descendo a mão numa bateria Caramuru tentando acompanhar um disco do Grand Funk Railroad tocando nas caixas de som do estéreo do seu pai? É, esse era eu. Sou eu. Ainda? Será? Garotos de quatorze anos não estão muito interessados em paz, de qualquer forma. Talvez eu não seja mais o garoto de quatorze anos então. Porque eu quero, quero MUITO, paz. E aprecio especialmente o silêncio. Será que cresci? Cartas para a redação…

Durante a refeição, dois whatsapps surgiram no meu celular. Um, da querida Srta. Clara, continha uma cópia de uma conversa que tivemos pelo Twitter, datada de 11/11/11. Olha que data cabalística! Catalítica! Cataclísmica! Cabalismos cataclísmicos de calculistas catalíticos. Ou de ciclistas canibais catatônicos. Sei lá, mil coisas… Mas além da data surpreendente, e do momento na minha vida em que esta mensagem me alcançou, o seu conteúdo era mais surpreendente ainda: “@SrtaClara, ainda voltarei a blogar, minha doce Srta. Clara… :p – disse Felipe Lemos – @hotelbasico”. E ela concluiu sua breve mensagem com uma… seria uma prece? Um desejo? – “Enquanto há vida, há esperança… certo?”

11/11/11… Adoro datas assim. No meu livro, ainda inédito, “Alguma Mania – Letras 1982/1944” tem uma letra chamada Agosto (8/8/88), que aqui transcrevo pra vocês:

Agosto (8:8:88)001

Letra triste… Minhas letras são tristes. A maioria, pelo menos. Não vejo o mundo cor de rosa, mas também eu não precisava ser tão depressivo, né…?

8/8/88… 08 de Agosto de 1988… Vinte e sete anos atrás… Eu morava no Bixiga, no apezinho rock’n’roll… Estava casado com a Inez, nossa filha ainda não havia nascido. Como era o Capital Inicial nessa época? Hum, devíamos estar gravando o nosso terceiro disco, Você Não Precisa Entender, ou ensaiando para ele. A banda estava dividida: eu, Flávio e Loro ensaiávamos num estudiozinho em Pinheiros, na Teodoro Sampaio, se não me engano. O Bozzo e Dinho ensaiavam no home studio do Bozzo, na Penha. O objetivo final era juntarmos o material que surgisse desses dois times, selecionando as melhores músicas para fazermos o disco. O trio emplacou À Portas Fechadas, Movimento, O Céu, Blecaute. A dupla contribuiu com Fogo, Rita, Limite, Pedra Na Mão, se não me engano. Ainda teve Ficção Científica, que era do Aborto Elétrico. Eu escrevi as letras de Movimento e O Céu, e participei com alguns versos em Limite (o refrão) e Blecaute. O nosso roadie na época, Roberto Peixoto, já falecido, escreveu as letras de Rita e À Portas Fechadas. Meu pai escreveu a letra de Pedra Na Mão, acho que com a participação do Dinho, que escreveu Limite, Blecaute e na minha opinião sua melhor letra até hoje, Fogo.

Mas não era sobre isso que queria falar, embora tenha justamente acabado de falar …dâ… Queria tentar lembrar o clima, a época, o que eu sentia. Como era meu dia-a-dia. Mas acho que nunca vou saber. Talvez essa letra aí em cima pudesse dar uma pista, mas como eu sempre escrevi letras melancólicas, não sei se é uma boa pista. As outras letras do disco… Movimento é legal, pra cima… /para todos os fins/ o meio é o movimento/… Foi tão legal quando Loro fez aquele riff de guitarra, já dentro do estúdio! O Bozzo, que havia gravado os teclados antes do Loro criar o riff, quando ouviu quis mudar o que havia feito. Ficou puto porque achou que os timbres não estavam à altura do riff poderoso que o Loro havia criado. Bobagem… Ainda bem que o Sussekind não foi na onda dele. Estúdios Polygram, na Barra da Tijuca. Puxa, comecei a lembrar daquele mês de gravação no Rio… Mas é assunto para outro blog…

Lembrei agora: quando eu blogava, algumas vezes eu fazia justamente isso, lembrava de um assunto, dizia que ia voltar a comentá-lo em outro blog, e, claro, não comentava nada depois, para desespero dos meus leitores. Se eu voltar a escrever, uma das prioridades poderia ser pegar todos esses ‘ganchos’ que deixei espalhados pelos meus blogs e desenvolvê-los. Quem sabe?

Sabe o que é? Fazia muito tempo que eu não sentava para escrever, aqui no computador da minha casa. As horas passam e você não sente, especialmente se tem um bom disco tocando, neste momento uma coletânea das gravações conjuntas de Milt Jackson e Miles Davis, e o assunto vai fluindo. Quer dizer, eu vejo as horas passarem, mas aquela sensação de inutilidade, de tempo perdido, desaparece quando estou escrevendo.

Eu sei que escrever me libertará. O Fê está preso? – você nobre leitor, ou leitora, se perguntará. Eu estava com receio de voltar a escrever, porque tem um assunto muito espinhoso que está na ponta da minha lingua há vários meses. É sobre o fim-de-semana quando não toquei com o Capital Inicial, o único da minha vida, a única vez em 32 anos que o CI tocou com outro baterista. Fora quando caí de moto em Brasília, em 1983. Mas esse não conta, porque é de certa forma romântico. Agora, o que aconteceu em Agosto de 2014 não tem nada de romântico, pelo contrário. Mas não é hora de falar sobre isso, não é, Srta. Clara?

Beeeeeeeeem… A outra letra no disco é O Céu. A letra da canção gravada é assim:

O Céu

Minha cabeça parece explodir
Nunca senti nada assim
Como se tudo pudesse acontecer
Num instante qualquer
A vida nas ruas
Não é mais a mesma
Eu não posso mais correr sem direção

Você não precisa entender
Só precisa me levar

O tempo muda sem aviso
E com ele as coisas que eu preciso

E as surpresas em cada esquina
De repente eu não sou mesmo a fim
Como são lindos todos os anjos
E o que serão essas luzes piscando?
No meio de toda essa fumaça?
Quem será que está me chamando?

Você não precisa entender
Só precisa me levar

O tempo muda sem aviso
E com ele as coisas que eu preciso

Essa letra é uma colagem de duas outras letras, que transcrevo abaixo, também do Alguma Mania:

O Céu001

Hey, essa não é uma letra depressiva! Acho que até consigo enxergar nela um pouco da ironia que tanto irrita certas pessoas… hehe!

A outra é essa aqui:

Vinte e Um de Junho001

Olha só… É dessa letra que saiu o título do disco! Disso eu não lembrava… Essa música mostra uma das maneiras que o CI compunha nos anos 80. Tudo que eu escrevia eu entregava para o Dinho, e ele, ao criar as melodias, ia escolhendo os trechos que julgava melhores, mais apropriados à melodia, ou talvez à sua ideia de como a letra deveria ser. Podia juntar partes de diferentes letras, como foi o caso aqui, ou acrescentar/retirar palavras ou frases. Ele tinha total liberdade. Eu só torcia para ele não fazer um bicho-de-sete-cabeças, criando as tristemente famosas sopas-de-letrinhas, letras que são um amontado de frases que não querem dizer nada juntas.

Lendo as duas letras agora, eu gosto delas individualmente. Cada uma delas conta uma história, evoca um estado de espírito, cria uma ‘paisagem humana’ (pensem em ‘paisagem sonora’ para entender. Complicou?…). O Céu (Me Mandou Um Sinal) é sobre um homem que não quer ver a grandeza que o destino lhe reservou. Não é literalmente sobre alguém ouvindo a voz de Deus, tá genteee? Mas poderia ser, o que seria mais engraçado ainda…

Vinte E Um De Junho fala sobre um cara que está feliz por estar de volta com quem ele realmente gosta. Tem notas sobre os riscos do amor livre e o cansaço da busca sem fim pelo parceiro, ou parceira, perfeito. Porque a perfeição não existe, né genteeee…!

Mas as duas letras, unidas como o CI gravou, também não ficou mal. É mais pop, porque as frases, digamos, mais bizarras, de O Céu (Me Mandou Um Sinal) foram retiradas. Vocês conseguem imaginar o Sr. Ouro-Preto cantando /o céu me mandou um sinal/ e eu fui lavar a louça/? Pois é… Soaria estranho, ou bizarro. Ou engraçado, irônico. Poderia ficar legal? Não sei. Seria outra música.

Em Vinte E Um De Junho não vejo nenhum problema, nenhuma bizarrice. Poderia ser cantada integralmente como está, na minha opinião. Seria uma linda canção de amor!

Analisando agora, vinte e sete anos depois, encontro uma sopa-de-letrinhas na união dos versos que falam de vida nas ruas, surpresas nas esquinas com os versos que falam da beleza dos anjos, luzes e fumaça… O que uma coisa tem a ver com a outra? Bem, poderíamos estar no Baixo Augusta, no meio de neons, fumaça e garotas com pouca roupa…hehe!

Ao ser montada desta forma, temos uma terceira letra. Sobre o que ela fala? Me parece que a chave para a interpretação está na sutil mudança do refrão /é inverno/ o tempo muda/ e com ele/ aquilo que eu preciso/ para /o tempo muda sem aviso/ e com ele as coisas/ que eu preciso/. Sutil. A nova letra falaria então das surpresas inerentes à existência e da nossa incapacidade em compreender os desígnios do destino. Chique, hem???

Não importa, realmente. O Céu, como o Capital Inicial gravou, é a música que existe. Um artista não precisa justificar sua arte. Existem boas e más letras, mas quem julga é quem ouve. Cada um ouve de um jeito único, cada música é interpretada e vivida pelo ouvinte de um jeito pessoal, intransferível. Se uma determinada música vai entrar para a história da canção popular, ou ficar esquecida entre as milhões de canções que os seres humanos já produziram e virão a produzir, cabe a História decidir. Mas mesmo que, se para apenas um solitário morador de Dois Córregos – SP, esta música significar alguma coisa, então ela já merece um selo de distinção e uma medalha de honra por serviços prestados em prol da dignidade humana.

Muito digno!