Além do Farol tem um Porto – parte 1

Eram quatro horas da tarde e eu ainda não havia ido fazer minha oferenda à Iemanjá. Salvador, Bahia, praia de Itapuã, dia 02 de Fevereiro. Eu simplesmente precisava ir.

Durante o almoço pensei em fazer minha oferenda no laguinho atrás do restaurante, afinal ela é a rainha de todas as águas, mas a idéia não vingou, ainda bem. Preguiça não combina com devoção.

Pensei em comprar um buquê de flores, não havia floristas no hotel. Pegar um táxi até o Rio Vermelho, ou ao comércio mais próximo, hum… Olhei ao redor, havia flores de várias espécies no jardim do hotel. Faria eu o meu buquê, com as flores que eu próprio colheria.

Guardei meu celular e o livro que eu estava lendo no quarto. Iria para a praia apenas com a roupa do corpo. Voltei ao jardim, comecei a colher flores. Me senti embaraçado, com vergonha. Olhei para mim mesmo de fora, como se eu estivesse me observando de um outro eu. Fiquei constrangido com a minha figura, me senti patético. Matutei um pouco esses pensamentos. Eu tenho que dar satisfação à alguém? Porque eu ainda me aborreço quando reconheço que existe um lado espiritual na minha vida? Naquele momento, colher flores era uma demonstração de fé. Eu tenho um grande problema em falar sobre ou demonstrar fé. Vem da infância. Nada que uma educação comunista não explique.

No colégio, eu devia estar na terceira ou quarta série, em uma conversa com duas garotas. Uma então falou que era católica, a outra disse que era crente – devia ser o correspondente à ser o que evangélico é hoje – Comecei a suar, antecipando a direção que a conversa ia tomar. Dito e feito. Uma delas se virou para mim e perguntou:
– E vocé, o que que é, é católico ou crente?

Fiquei mudo e envergonhado. Eu não era nada. Nunca havia tido educação religiosa. Meu pai, um comunista bonzinho, não comeu criancinhas, trouxe o materialismo dialético para dentro de casa. Não havia espaço para enrolação de deus, anjo, santo, diabo. Terra do Sol havia… Minha mãe havia tido uma educação católica, mas acho que os dois, como bons pais progressistas, devem ter decidido que seus filhos escolheriam ter uma religião, ou não, quando entendessem do assunto. Nada de lavagem cerebral nas crianças! A religião é o ópio do povo!

Talvez eles pudessem ter conversado mais sobre o assunto, para eu saber que eu era um ateu e que não havia nada de errado com isso. Talvez tenham até tentado, mas não só ouvia o que eu queria ouvir, eu? Poderia eu ter perguntado, investigado? Eu era um menino que chegava quieto e saía calado. Assim foi.

Talvez, contudo, a história tenha começado bem antes. Um dia eu cheguei em casa e disse que queria ir pra aula de catecismo. Meus pais me olharam de um jeito estranho, eu nunca tinha manifestado interesse pelo assunto. A aula seria sábado de manhã, numa igreja em construção perto da Colina, a Igreja do Verbo Divino. Sobre esse singelo nome, demorou uma porrada de tempo até eu entender que Verbo Divino queria dizer a palavra do divino Deus.

A igreja ficava na 609 Norte, à noroeste da Colina. Debaixo do bloco A, olhando para o Lago, a igreja ficava à um quilômetro, na direção da orelha esquerda. Posição oito horas no relógio, sendo doze para onde você está olhando. Na direção do por do sol. Muito importante.

O caminho até lá era por uma trilha. Não havia outras construções entre a Colina e a igreja, apenas o cerrado. Um campo de mato salpicado de árvores baixas e tortas. E muitos cupins. Não o inseto, mas suas casas, os cupinzais. Montinhos de terra dura como pau, verrugas de barro seco na pele do planalto. A trilha por onde passávamos, caminho tortuoso e estreito, entre as moitas de capim-gordura, feito por milhares de passos seguindo a mesma direção, sempre pisando no mesmo lugar, durante anos. Os caminhos de rato. (continua)

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3 Respostas to “Além do Farol tem um Porto – parte 1”

  1. Geeh - Recife Says:

    mudou do entra calado e sai mudo..pra observador.
    E a Bahia hein? sem comentários.

    beijos..saudades de você.

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  2. Magda Says:

    Religião… acho que ela existe pra separar as pessoas. Que no final das contas, acreditam no mesmo Deus.
    Farei com os meus filhos o que seus pais fizeram com você. Quando entenderem o assunto, se quiserem, eles que escolham em que e em quem acreditar.

    Você é genial!

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  3. Nayara Patini Says:

    Que tema resolveu abordar…
    Nunca tive problema em dizer q não tenho religião, apesar do estranhamento. Acho q a crença em Deus já basta, não é isso o q em seu resumo se prega? 🙂

    Muito bom o texto
    Bjo

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