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Alguém em João Pessoa – final

28/03/2011

A praia, infinita, me convidava à frente. A falésia, um arco-íris de amarelos, marrons e ocres, me levava ao alto. A hora também já ia alta. O caminho de ida implicava um mesmo caminho de volta, eu não estava sozinho para poder deixar o tempo me levar. O que eu poderia fazer ali, tão próximo à mãe África, distante do mundo conhecido, de seus perigos e armadilhas, de frente à um novo mundo, estranho, misterioso, encarando o desafio da descoberta e do inesperado? Uma boa mijada, claro!

De frente para o Leste, apontando contra os nossos ancestrais meu nariz, uni-me à mãe Terra, planeta água, através de minhas excreções (desculpa mãe…). Olhei mais uma vez para o horizonte em busca de navios negreiros, para a praia desconhecida, para a falésia onde novos tons de cor surgiam à cada olhar, e encarei a cidade que havia deixado. Eu estava distante, seria uma longa caminhada. Bem, para cada milhão de milhas temos que dar o primeiro passo. Respirei fundo, e … lembrei que a Abolição é paralela à Japurá, rua que foi nosso primeiro porto quando, vinte e seis anos atrás, zarpamos atrás de nossa alforria, ou de nosso sonho se preferirem. Foi preciso atravessar o oceano que separava nossa infância digamos, avoada, no CCJ – Clube da Criança Junkie – em Brasília, de nossa pós-adolescência digamos, arretada, na ACM – Associação Chapadã de Marmanjos – em São Paulo.

Imagens de Sampa apareceram, lembrei do porão da casa do Dinho onde ensaiávamos todos os dias, do nosso primeiro empresário paulista, o Dudu e sua irmã Astéria, vizinhos três casas adiante, da Estela, da Paula Lemos e sua Caravan Marron, da nossa Santa (nem tanto…) Protetora da Japurá, a Patida, do casal português da mercearia em frente, a dona tinha bigode e se chamava Maria, o dono era o seu Manuel, barrigudo e de tamancos, típicos demais para serem reais. Aposto que nunca haviam limpado uma teia de aranha daquele lugar, escuro, sorumbático, garrafas centenárias cobertas de pó nas prateleiras, … quando… um movimento quase imperceptível, uma sombra no canto do olho, eu instintivamente me virei.

Minha impressão foi de que a Matrix tinha dado um soluço. Desacreditei, dei uma pancada na cabeça, tipo para sintonizar melhor a tv. Cocei os olhos. Eu havia capturado o último movimento de algo que não deveria estar se movendo. Como quando a gente olha para o céu numa noite sem nuvens e no exato instante vê uma estrela cadente, mas diferente porque estrelas cadentes são comuns. Uma pedra do tamanho de uma máquina de lavar roupa, das grandes, deu a última rolada e parou à uns cinco metros deste euzinho que vos fala.

De primeira não entendi. Ver uma pedra daquele tamanho rolando pareceu irreal. Aquela pedra devia, deveria estar naquele mesmo lugar há anos. Imóvel, sólida, perene. Depois, como era possível uma pedra rolar ali, a praia era praticamente plana desde a linha d’agua até a base da … falésia. A falésia. Olhei para o barranco gigante, que deveria ter uns trinta metros de altura, eu calculei. Três metros por andar, um prédio de dez andares.

Hum, a pedra ao rolar provavelmente descreveu uma trajetória reta, refiz o caminho imaginário até a base, comecei a subir o olhar, e … encontrei uma marca no paredão de terra, um arranhão, como se algo tivesse raspado ali recentemente. Não podia ser… Continuei subindo o olhar, senti um calafrio. Próximo ao topo, onde a terra avermelhada fazia fronteira à um solo mais cinzento, havia uma reentrância na parede, como o negativo de uma colher, do tamanho aproximado da pedra. Olhando com cuidado, eu vi vestígios de terra solta nas bordas . Não era possível. A pedra havia se soltado do paredão, uns vinte metros acima da minha cabeça, alguns segundos depois de eu ter passado bem à sua frente.

Não fez um strike porque, sei lá porque. Talvez o jogador de boliche estivesse bêbado, talvez. Ou usou uma bola 9 ao invés de uma 12. Mas… duvido que alguém do outro lado use alguma droga, estar lá já deve ser a maior viagem do universo. E se Deus não joga dados, como bem lembrou Einstein, a bola escolhida era A bola. Talvez tenha sido só uma brincadeira. Uma piadinha prática a la Plebe Rude. Um aviso? Pra amar as pessoas como se não houvesse amanhã?

Fiz um zoom da cena, vista de cima, de um helicóptero: um cara sozinho numa praia deserta, o mar verde à sua frente, um paredão às costas, o sujeito está esvaziando a bexiga, longe de tudo, de todos, despreocupado, em completo bliss, nesse exato instante uma pedra pula do paredão, vinte metros acima, exatamente onde ele está, como se alguém tivesse, sei lá, dado um peteleco nela, ou espremido uma espinha, e aquele adorável pingo de puz voado bem no seu olho. A base da falésia é curva, a pedra não bate no chão e afunda, ela rola silenciosamente em sua direção, e, só não o atinge porque a energia que ela perde com o atrito na areia é proporcional à distância que ela percorre, e nosso incauto herói havia acabado de fechar a barguilha e dado três passos em direção à sua casa…

O calafrio virou tremedeira. Se eu tivesse mijado na falésia ao invés de no mar… Arrepiado, cravei o cajado na areia dura e apertei meu passo.

A natureza sempre encontra um jeito de nos lembrar quem é que tem a última palavra. Morrer esmagado por uma pedra enquanto mijava. Como diria meu grande amigo Fred Nascimento, fica ruim na biografia.

Citando a Wikepedia:

“Falésia é uma forma geográfica litoral, caracterizada por um abrupto encontro da terra com o mar. Formam-se escarpas na vertical que terminam ao nível do mar e encontram-se permanentemente sob a ação erosiva do mar. Ondas desgastam constantemente a costa, o que por vezes pode provocar desmoronamentos ou instabilidade da parede rochosa. (…) ”

Pois é.